A série tem seus defeitos, mas muitos méritos. O maior deles é abordar a questão da “culpa” dos EUA pelos problemas do Oriente Médio
Em 2012, em sua primeira temporada, Homeland venceu o Emmy de melhor série dramática, impedindo o pentacampeonato de Mad Men. Neste ano, após uma segunda temporada instável, foi superada por Breaking Bad. A derrota não deve desmerecer o trabalho dos produtores e do elenco. Apesar de alguns erros importantes, Homeland é, além de entretenimento de alta qualidade, capaz de fazer a massa refletir sobre uma questão hoje tratada apenas em círculos especializados: As ações dos Estados Unidos contribuem para o terrorismo?
Homeland, cuja terceira temporada estreou no domingo 29 nos EUA, é centrada em uma história inusitada. Depois de oito anos sequestrado por integrantes da Al-Qaeda no Iraque, o sargento Nicholas Brody (Damien Lewis) é resgatado. A reaparição do fuzileiro naval coloca em alerta a agente da CIA Carrie Mathison (Claire Danes), que investiga a suspeita de que um militar norte-americano teria sido cooptado pela rede terrorista e voltaria aos EUA para atacar o próprio país. O enredo se desenrola (e às vezes se enrola) baseado na intensa relação entre Carrie e Brody e no árduo trabalho da agência de inteligência para desbaratar um plano terrorista.
Há, como já mostraram revistas especializadas como a Foreign Affairs e a Foreign Policy, uma série de problemas no quesito verossimilhança de Homeland. Eles vão desde a forma como a CIA age até a representação dos terroristas. O mais grave parece ser a improvável aliança entre a Al-Qaeda, rede terrorista global cuja matriz de pensamento é sunita, e o grupo xiita libanês Hezbollah, que se forma num determinado momento da segunda temporada. Tudo bem que a série trata de um desdobramento que poderia colocar o Oriente Médio de cabeça para baixo – um ataque de Israel ao Irã – mas ainda assim é difícil imaginar tal união, especialmente porque, enquanto você lê este texto, militantes da Al-Qaeda e do Hezbollah estão matando uns aos outros na Síria.
Apesar dos erros, Homeland tem um trunfo. Como já notaram diversos críticos, a série é extremamente corajosa e busca debater pontos nevrálgicos do pós-11 de Setembro, como a tensão entre moralismo e pragmatismo na política externa norte-americana, o preconceito contra muçulmanos, o papel da imprensa e as contradições da política. Mais que isso, Homeland dá ferramentas para o cidadão comum, seja nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar, refletir sobre o impacto das ações de Washington no mundo árabe-muçulmano.
Em Homeland, convive-se com a possibilidade de o terrorista não ser “o outro”, mas “um de nós”, afetado pelos mesmos problemas que o “nosso governo” impõe ao “outro”. No caso (e aqui pede-se vênia pelo possível spoiler) se trata do assassinato de uma pessoa querida, que provoca um sentimento de vingança em quem fica. De fato, é um reducionismo atribuir a transformação de uma pessoa em um terrorista com base num único fato, mas o objetivo da série aqui não é desenvolver um tratado sobre o tema. É mostrar que as ações dos Estados Unidos têm, sim, um grau de influência importante na criação de terroristas.
Como afirmou Lawrence Wright, autor de O Vulto das Torres, livro sobre o 11 de Setembro, a força da Al-Qaeda deriva de um ambiente cheio de repressão política, pobreza, desemprego, analfabetismo, sexismo e sentimento de insignificância cultural, que são potencializados pelas ações dos Estados Unidos naquela região. Não se trata aqui de demonizar o governo dos norte-americanos. Como bem afirmou Barack Obama em discurso da ONU, um Oriente Médio com menos presença dos Estados Unidos é um Oriente Médio pior e não melhor. Se não houvesse os EUA, outra potência, possivelmente a Rússia ou a China, assumiria seu lugar na região e os resultados seriam ainda mais desastrosos. O que é preciso é que a presença dos Estados Unidos no Oriente Médio seja mais bem qualificada.
O primeiro passo para tanto foi dado em 2005, quando a Casa Branca, ainda sob George W. Bush, reconheceu o desastre provocado por sua política no Oriente Médio. “Por 60 anos, os Estados Unidos buscaram estabilidade à custa da democracia no Oriente Médio – e não conseguimos nenhuma das duas”, afirmou a então secretária de Estado Condoleezza Rice, num histórico discurso no Cairo. A partir dali, disse ela, os EUA passariam a apoiar a democratização da região. O ímpeto acabou rápido, com um resultado expressivo da Irmandade Muçulmana nas legislativas do Egito (ainda sob a ditadura Hosni Mubarak), em 2005, e a vitória do Hamas nas eleições dos Territórios Palestinos Ocupados, em 2006. Ficou claro, ali, que a democratização do Oriente Médio seria um processo dificílimo, que envolveria conciliar os valores democráticos com as visões fundamentalistas presentes na região.
Essa bomba estourou nas mãos de Barack Obama. Após uma tentativa de retomar o compromisso de apoio à democracia assumido e depois deixado de lado por W. Bush, Obama se viu em meio à chamada Primavera Árabe. Os meses passaram e a hipocrisia da política externa norte-americana, provocada pela tensão entre interesses e ideais, foi exposta de uma maneira brutal. No Egito, Obama apoiou a queda de Mubarak e se calou diante do golpe que derrubou Mohamed Morsi. Na Líbia, participou de intervenção armada. No Bahrein, fechou os olhos para a repressão. Na Síria, não consegue influenciar um conflito que já matou mais de 100 mil pessoas. Não é à toa que os EUA têm uma imagem tão fortemente negativa no Oriente Médio (que chega a 81% da população no Egito e 85% na Jordânia). As populações locais sabem que as ações de Washington ajudam a manter vivo o ambiente onde prolifera o terrorismo, aquele de repressão política, pobreza, desemprego, etc. É importante que a população norte-americana também tenha este tipo de entendimento e perceba que as ações de seu governo contribuem para fomentar uma ameaça que, em última instância, se volta contra ela própria. É neste ponto que Homeland extrapola a tevê e exerce um papel político-social nos Estados Unidos.
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