"O método básico do terrorismo é a destruição da vida humana"

José Arbex Junior, em “Guerra Fria: terror de Estado, política e cultura”, Ed. Moderna, 1997.

Pensamento...

Si vis pacem, para bellum (Vegetius)

A paz através da força... quanto mais fortes estivermos, menores serão as chances de sermos alvos de ameaças externas.

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"Os tolos dizem que aprendem com os seus próprios erros; eu prefiro aprender com os erros dos outros.”

Otto von Bismarck

quinta-feira, 23 de abril de 2015

A Central Intelligence Machinery e seus controles: serviços secretos britânicos, sua estrutura e accountability


por: Wilson Tosta
Mestre - PPGHC/UFRJ

Este artigo descreve, de maneira resumida, a estrutura de inteligência do Reino Unido vigente no início de 2010 e os controles sobre ela. O texto apresenta a Central Intelligence Machinery, rede de comitês e estruturas estabelecida no gabinete de governo para formulação e implementação de políticas para a área de inteligência britânica. Também descreve as estruturas criadas para controlar a atividade de inteligência no Reino Unido.

Palavras-chave: Inteligência – serviços – Reino Unido

Abstract: This article describes, in a summarized way, the intelligence structure in the  United Kingdom  in the beginning of 2010 and the control mechanisms over it. The text presents the Central Intelligence Machinery, the web of committees and structures established in the Government Cabinet for the formulation and implementation of politics in the British intelligence area. It also describes the structures created to control the activity of intelligence in the UK.

Key-words: Intelligence – services – United Kingdom

INTRODUÇÃO:
    Até 1989, os serviços secretos britânicos atuavam fora de marcos legais explícitos. Embora sua existência fosse evidente, não havia legislações específicas para regular e/ou controlar externamente a ação desses órgãos, que eram literalmente secretos e não prestavam contas rotineiramente ao Judiciário, nem ao Legislativo. Somente em 1992, por exemplo, foi admitida, em discurso feito ao Parlamento pelo então primeiro-ministro John Major, a existência do Secret Intelligence Service (SIS), ainda hoje conhecido popularmente pela antiga denominação MI6 e encarregado da inteligência externa do país. O fim da Guerra Fria, contudo, ensejou uma mudança da postura do Reino Unido em relação a suas agências de inteligência. A decadência, ao longo dos anos 80, e posterior extinção da União Soviética, em 1991, levaram a opinião pública britânica a questionar os altos gastos do país com defesa e inteligência, presumivelmente mais adequados aos tempos de conflito latente com o bloco comunista, encerrados pelo fim da URSS, do que aos novos tempos livres da bipolaridade.
    Um pouco da atmosfera de questionamento por parte da opinião pública que cercou os serviços secretos do Reino Unido após o fim da Guerra Fria pode ser visto no Report 1997-1998 do Intelligence and Security Committe, órgão parlamentar criado pela nova legislação para fiscalizar a atividade de inteligência no Reino Unido:

“This new oversight committee came into being at a significant time. With the ending of the Cold War and the disappearance of the threat that had been seen as the main justification of the Agencies’ existence, many more questions had been asked about them: do we still need them? Do we still need so much of them? Could they be reduced or amalgamated? Can you still justify their methods of operation in a world free of Cold War threats?(1)


    Em aparente busca de legitimidade que justificasse a existência de seus serviços secretos, o Estado britânico editou um conjunto de leis para regulá-los e controlá-los externamente. –o  Security Service Act 1989, o  Intelligence Services Act 1994 e a Regulation of Investigatory Powers 2000, e outras normas menos importantes-, e oficializou/tornou pública uma Central Intelligence Machinery auditável externamente. Essa Machinery é objeto deste artigo, que aborda de maneira sucinta e descritiva sua estrutura e sua relação com as Agencies, como são conhecidos o SIS, o Security Service e o GCHQ entre os britânicos. O texto também apresenta e analisa, muito rapidamente, algumas das principais estruturas de controle externo das agências britânicas de inteligência, instituídas com a nova legislação nos três Poderes.
    Este artigo não entra no mérito quanto ao funcionamento das estruturas estudadas, limitando-se a examinar como deveriam, em linhas gerais, operar, segundo as leis do Reino Unido.  Baseia-se em parte da pesquisa que gerou a dissertação Eterna Vigilância – Uma história comparada de serviços secretos e seus mecanismos de controle parlamentar no Reino Unido e no Brasil pós-Guerra Fria (1989-2009), que o mestrando defenderá em maio de 2010 no PPGHC-UFRJ. As informações transcritas neste artigo foram coletadas em site do governo britânico(2) e também na legislação de inteligência do Reino Unido.

    A ESTRUTURA BRITÂNICA DE INTELIGÊNCIA
    A estrutura de inteligência do Reino Unido compreende (3) uma rede de organizações articuladas a partir do gabinete do primeiro-ministro, ancorada em três secretaries (ministérios): Foreign and Commonwealth, Home e Defence, com um Permanent Secretaries’ Committe on the Intelligence Services (PSIS), um Joint Intelligence Committee (JIC), um Ministerial Committee for the Intelligence Services(CSI). (4) Esses órgãos integram a Central Intelligence Machinery, cuja coordenação é  tripartite: tem um Head of Intelligence, Security and Intelligence, que assessora o chefe de governo em ações do setor; um chefe do JIC, responsável por avaliações presumivelmente independentes e por formular políticas na  área de inteligência; e um Cabinet Secretary, que administra a Single Intelligence Account (SIA), orçamento das três agências e gerencia o desempenho dos serviços secretos. (5).

Os braços operacionais da rede são o Secret Intelligence Service (SIS), também conhecido como MI6, encarregado da inteligência externa; o Security Service, chamado de MI5, que cuida de contrainteligência e contraterrorismo; o Government Communications Headquarters (GCHQ), que trabalha com inteligência de sinais;o Defence Intelligence Staff (DIS), que cuida da inteligência de defesa; e  o Joint Terrorism Analysis Centre (JTAC), órgão conjunto, dedicado a combater o terrorismo. (6)
    O próprio primeiro-ministro preside o Ministerial Committee for the Intelligence Services, também integrado pelo vice-primeiro-ministro, pelos Home, Foreign e Defence secretaries (ministros) e pelo chancellor or the Exchequer (ministro da Fazenda).  A função oficial desse conselho é aprovar e supervisionar a política de inteligência e segurança do Reino Unido. A cada ano, o Ministerial Committe deve  examinar e fixar metas e prioridades para a inteligência britânica, a partir de propostas apresentadas pelo Joint Intelligence Committe – os Requirements and Priorities for Secret Intelligence. Isso, porém, não acontece, pelo menos não com essa periodiocidade, ficando a formulação das políticas presumivelmente no nível individual das agências, sobretudo nos casos mais imediatos, no Joint Intelligence Committee e em reuniões dos ministros sobre crises e problemas da área.
    O PSIS foi constituído para, em relação a prioridades e execução orçamentária das agências, assessorar os ministros, que também decidem o orçamento da SIA. A Central Intelligence Machinery e o DIS são sustentados separadamente, por verbas do Gabinete e do Ministério da Defesa, respectivamente. Os custos do JTAC são bancados conjuntamente pelos departamentos e agências envolvidos no trabalho de inteligência e contraterrorismo, mas também podem ter ajuda adicional da SIA, por meio do Security Service, com o qual  o JTAC  tem ligações mais diretas. (7)
    O JIC (8) é formado por  funcionários sênior de vários órgãos: Foreign and Commonwealth Office, Defence (inclusive o chefe do DIS), Home Office, Department of Trade and Industry, Department of International Development, Treasury e Cabinet Office. Os chefes do MI-6, MI-5 e GCHQ  também integram o órgão, além do chefe do Assessments Staff . (9) Outros órgãos podem participar, se necessário. Entre as funções do JIC, está guiar estrategicamente o trabalho de coleta, análise e avaliação da inteligência britânica. Também é tarefa do JIC acompanhar o desempenho das Agencies para cumprir suas missões.
    O SIS tem com principal função “the collection of secret foreign intelligence on issues concering Britain’s vital interests on the fields of security, defence, serious crime, foreign and economic policies”.(10) Desempenha seu trabalho a partir de requerimentos, metas e prioridades estabelecidos pelo governo britânico e usa fontes humanas e técnicas para obter informações, além de ligações com serviços de inteligência e segurança estrangeiros, com os quais mantém intercâmbio. Seu marco legal foi estabelecido somente em 1994, no Intelligence Services Act (ISA), uma lei criada depois que o primeiro-ministro John Major reconheceu, em 1992, a existência do serviço – até então, nenhum governo britânico admitira oficialmente que o MI-6 realmente existia, embora isso fosse publicamente sabido.
    O ISA, pela primeira vez, colocou a inteligência exterior britânica sob um marco legal. (11) Formalizou a responsabilidade do Foreign Secretary pelas ações do serviço – ele responde por elas frente ao Parlamento - e definiu as funções de seu chefe. A lei fixa o dever do SIS de obter e providenciar informações relacionadas a atos e pessoas, fora do Reino Unido, no campo da segurança nacional, com especial interesse para a defesa e política exterior; para o bem-estar econômico do país; e em apoio à prevenção ou detecção de “serious crime”. Também dá ao MI-6 o poder de atuar no exterior e de forma clandestina, em apoio aos objetivos do governo de Sua Majestade. O SIS foi estabelecido em 1909, como parte do Secret Service Bureau responsável pela espionagem no exterior, mas só recebeu a denominação atual mais tarde. (12)
    Responsável por proteger a segurança interna britânica, o Security Service tem como alvos o terrorismo, a espionagem e as armas de destruição em massa. Seu estatuto legal é anterior ao ISA: a lei que pela primeira vez o regulamentou é o Security Service Act, de 1989, que, entre outros pontos, formalizou a responsabilidade do Home Secretary e de seu diretor-geral pelos atos da agência e definiu suas funções. Elas compreendem proteger o país de espionagem, terrorismo e sabotagem por parte de potências estrangeiras e de ações que objetivem destruir a democracia parlamentar; salvaguardar o bem-estar econômico britânico de ações ou intenções de pessoas fora das Ilhas Britânicas; e apoiar a polícia e outras forças de imposição da lei na prevenção e detecção de crimes graves.
    Para cumprir essas missões, o Security Service – que deixou de se chamar oficialmente MI-5 em 1931, mas ainda é conhecido por essa sigla – investiga ameaças pela coleta e análise de inteligência, confronta suas fontes, avisa governos e outras instituições a respeito da natureza delas e sobre medidas protetivas para enfrentá-las, além de ajudar outras agências, organizações de departamentos governamentais no combate a elas.  Desde o estabelecimento da Serious Organised Crime Agency (SOCA), o Security Service suspendeu o seu trabalho envolvendo crimes graves, para se concentrar no combate ao terrorismo, prioridade mais urgente. O Security Service, como o SIS, não tem poder de polícia, necessitando da participação de forças policiais no caso de haver necessidade de realizar prisões. Sua origem é o braço doméstico do Secret Service Bureau. Seu papel mudou significativamente com o fim da Guerra Fria, quando passou a priorizar o contraterrorismo. (13)
    Com as funções de realizar interceptação de comunicações e dar assistência técnica e assessoria para segurança de informações, o Government Communications Headquarters (GCHQ) produz inteligência para uso em segurança interna, operações militares e segurança pública. No campo da segurança de informações, o GCHQ tem por missão manter seguros os sistemas de comunicação e informação do governo britânico. Trabalhando estreitamente ligado ao Security Service, a  outros departamentos governamentais e à indústria, o GCHQ também protege informações sensíveis. Também ajuda os responsáveis por sistemas nacionais de infraestrutura, como o de energia, fornecimento de água, telecomunicações etc a manter suas redes de computadores a salvo de invasões e sabotagem.
    Assim como o SIS, o GCHQ ganhou estatuto legal amplo com  o Intelligence Services Act 1994, posteriormente emendado por outras normas. Essas leis estabelecem as fronteiras sobre o que interceptar e reportar aos departamentos do governo, aos comandos militares e ao SIS, com base nos pedidos e prioridades estabelecidos pelo JIC e aprovados pelos ministros. Por lei, o Foreign Secretary é o responsável, frente ao Parlamento, por sua atuação. Foi estabelecido em 1919, com o nome de Government Code and Cypher School, tendo adotado a denominação atual em 1946. (14)
     O Defence Intelligence Staff (DIS) difere das Agencies: não é uma organização autônoma, mas parte do Ministério da Defesa britânico. Seus clientes são o próprio Ministério, comandos militares e tropas em missão. Coleta inteligência em apoio direto a operações bélicas e às Agencies, além de fornecer serviços geoespaciais, como mapas, e treinamento no Defence College of Intelligence. Surgiu em 1964, da fusão dos serviços de inteligência militares com o civil Joint Intelligence Bureau. É comandado por um Chief of Defence Intelligence (CDI) e se submete à Regulation of Investigatory Powers 2000. (15)
    Um produto do medo do terrorismo pós-11 de setembro, o Joint Terrorism Analysis Centre (JTAC) surgiu em 2003. Congrega membros das Agencies, do DIS e de outros órgãos, inclusive da polícia. Emite sobre ameaças terroristas, avalia seu nível e providencia relatórios mais aprofundados. (16).
A estrutura britânica de inteligência poderia ser resumida no quadro abaixo, com alguns de seus principais órgãos.


ESTRUTURA BRITÂNICA DE INTELIGÊNCIA (2010)

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Fonte: THE STATIONERY OFFICE (TSO). National Intelligence Machinery.  Emhttp://www.cabinetoffice.gov.uk/security_and_intelligence/community/central_intelligence_machinery/joint_intelligence_co
mmittee.aspx

    OS CONTROLES LEGAIS SOBRE OS SERVIÇOS
    Retomo aqui uma descrição que já fiz em outro artigo, Reino Unido, Espanha e Brasil: três casos de controle público de serviços de inteligência no pós-Guerra Fria, publicado no volume3/2008 deste Boletim do Tempo, no qual abordei, igualmente de maneira rápida para fins de comparação, alguns controles legais sobre serviços de inteligência britânicos. Corro, assim, o risco de ser repetitivo em relação a texto anterior, que reproduzo parcialmente aqui. Acredito, contudo, ter isso essencial para uma compreensão abrangente da relação entre as agências de inteligência britânicas, que atuam em segredo, e seus mecanismos de controle, que são públicos e em tese representam o contribuinte que sustenta esses serviços.
    Um desses controles é exercido diretamente pelos próprios ministros de Estado, em relação às respectivas agências, prestando contas ao parlamento como responsáveis políticos, em última instância, pelas ações dos serviços. Outro se dá pela atuação de comissários independentes, nomeados pelo Executivo com amplos poderes para fiscalizar os órgãos do setor, e de um Investigatory Powers Tribunal, corte judiciária que recebe e apura reclamações contra os serviços secretos. Um terceiro mecanismo é o Intelligence Services Committee (ISC), comissão parlamentar (17) que elabora relatórios anuais detalhados e críticos sobre as Agencies,. além de Special Reports, sobre assuntos específicos e fora da rotina. O  governo emite “responses” (respostas) a esses textos. Tanto os reports quanto as responses, depois de sanitizadas (expurgadas, por ordem do primeiro-ministro, de elementos supostamente sensíveis para a segurança do Estado e da sociedade do Reino Unido), são divulgados na internet.
    A base legal para o sistema de accountability da inteligência britânica reside nas três leis já mencionadas: o Security Services Act, editado em 1989 e emendado em 1996; o Intelligence Services Act (ISA), de 1994; e o Regulation of Investigatory Powers (RIPA), de 2000. A norma de 1989 colocou o MI5 oficialmente sob autoridade da Home Secretary e estabeleceu suas funções e as responsabilidades de seu diretor-geral; o ISA, entre outros pontos, fixou as bases para o ISC exercer a fiscalização sobre o Security Service, o SIS e GCHQ em termos de gastos, administração e política; e o RIPA criou os cargos de Commissioner for the Interception of Communications e de Commissioner for the Intelligence Services, além do Investigatory Powers Tribunal, (18) que examina as reclamações  e os processos sob a seção 7 do Human Rights Act 1998. (19)
    Falarei mais adiante com mais detalhes sobre esses instrumentos de fiscalização. Antes, cabe conhecer um pouco das leis que estabeleceram o marco legal do sistema de inteligência do Reino Unido.
    O ISA, de 1994, (20)  incorporou alguns mecanismos estabelecidos originalmente em 1989 no Security Service Act. É ele que vincula e cada chefe de cada serviço de inteligência a suas ações e estabelece que é seu dever assegurar que nenhuma informação será obtida a não a ser aquela necessária ao “proper discharge of its functions”. (21) Destaco a importância deste mecanismo no sistema britânico, no qual o Executivo é exercido pelo partido com maior apoio no Legislativo, sendo responsável, frente aos parlamentares, pelos atos oficiais. A lei também proíbe a divulgação de informações de inteligência, a não ser que isso seja necessário para: atender a interesses de segurança nacional; prevenção ou detecção de crimes sérios; ou atender a procedimentos criminais.(22). O texto diz ainda que “the Intelligence Service does not take any action to further the interests of any United Kingdom political party”. (23)
    A lei fixa também um sistema de mandados expedidos pelos respectivos secretaries (ministros), ou, em casos urgentes, por funcionário graduado, a pedido do serviço secreto, para interferência com “propriedade ou comunicação”. A duração máxima é de seis meses, se o documento tiver sido assinado por um ministro, e de apenas dois dias úteis, nas demais hipóteses.  (24). O texto  estabelece ainda que o secretário de Estado (ministro) não dará autorização para ações fora do país, a não ser que esteja certo: de que elas serão necessárias para o desempenho apropriado das funções do serviço; de que nada será feito além do autorizado no mandado; e de que, até onde o que for feito estiver em acordo com a autorização, e sua natureza e conseqüências serão razoáveis e em relação com os propósitos da missão. (25)  Mesmo ações no exterior exigem a expedição de mandados pelos ministros ou funcionários graduados,o que não deixa de ser uma curioso.
    A norma legal também impõe limites aos mandados dirigidos para fatos e pessoas determinados e que devem ser detalhadamente descritos. (26) Os chefes do SIS e do GCHQ são obrigados a fazer relatórios anuais de atividades ao primeiro-ministro e ao respectivo secretary (ministro).
    No artigo 8 do Preamble, cria-se a figura, já referida neste texto, do “commisioner”,  um corregedor com alto cargo judicial, a ser nomeado pelo primeiro-ministro dentro da estrutura da Secretaria de Estado, mas fora do serviço,  para investigar reclamações contra as agências do setor. O “commisioner” pode até decidir se um mandato foi expedido corretamente pelo ministro secretário de Estado  (27) e também deve auxiliar o tribunal  encarregado de julgar as queixas contra os serviços, nomeado pela rainha. Deve fazer também relatórios anuais sobre suas atividades, dirigindo-os ao primeiro-ministro. (28)
    Atualmente (2010), existem dois comissioners para fiscalizar os serviços britânicos. O Intelligence Services Commissioner  supervisiona os mandados e autorizações para operações das Agencies e do DIS, principalmente aqueles expedidos sob proteção do ISA e do RIPA, sob responsabilidade dos respectivos secretaries. O Interception of Communications Commisioner acompanha a expedição e cumprimento de mandados permitindo a interceptação de comunicações e o manuseio de seus resultados pelos serviços de inteligência, segurança, defesa e policiais. Ambos têm poder para visitar as Agencies e departamentos relevantes no setor para discutir qualquer caso e examiná-lo em maior detalhe. Por lei, devem ter acesso a “whatever documents and information they need”. Seu relatórios são preparados ao fim de cada ano, encaminhados ao parlamento e depois publicados, estando disponíveis na internet, no site www.intelligence.gov.uk.
    Os dois commissioners também prestam assistência ao Investigatory Powers Tribunal, criado em outubro de 2000 para investigar as reclamações contra o setor. As reclamações podem ser movidas por indivíduos, de qualquer nacionalidade, com relação a conduta dos serviços em relação a eles ou a interceptação de suas comunicações. A corte tem amplo poder de investigação e, se considerar que as agências atuaram de forma imprópria, pode tentar remediar a situação, por exemplo, determinando o pagamento de uma indenização ao reclamante. (29) Segundo o ISA, (30)  é dever de todo funcionário do SIS, do GCHQ e do respectivo ministério fornecer ao “commisioner” toda informação ou documento que requisite. O corregedor deve fazer um relatório anual de suas atividades ao primeiro-ministro, que deve encaminhar cópias do documento às duas Casas do parlamento. (31) O chefe do Executivo pode excluir, da cópia ao Legislativo, assuntos “sensíveis”, após consulta ao respectivo commisioner. (32)
     Já o RIPA fixa em minúcias os procedimentos a serem seguidos pelos serviços de inteligência nos casos de interceptação de comunicações e postal; de produção e divulgação de dados obtidos dessa forma; de realização de operações de vigilância encoberta; de uso de fontes humanas de inteligência (humint); de violação da dados  protegidos por criptografia ou senhas. Também estabelece funções e jurisdição dos corregedores e de tribunais encarregados de fiscalizar a ação dos serviços de inteligência; a intervenção em comunicação sem fio ou em propriedades; e as funções das três agências no setor.
    Em sua Parte I, dedicada a regular a interceptação de comunicações, o texto estabelece um sistema de responsabilidades. A lei fixa, novamente, na figura do secretário/ministro de Estado a responsabilidade pela expedição do mandado para a realização do grampo telefônico. (33)  A autorização somente pode ser dada se pedida por autoridades listadas em dez casos. (34)  A lei também diz claramente quando uma interceptação é ilegal. (35)  Já em sua Parte II, o RIPA  regulamenta procedimentos para operações de vigilância direta, vigilância intrusiva e a gestão e uso de fontes humanas de inteligência, inclusive fora do Reino Unido. A vigilância direta só será considerada legal se expressamente autorizada e se seu desenvolvimento tiver ocorrido nos limites da autorização. (36)
    O sempre problemático o uso de fontes humanas só será autorizado  se for necessário e se adequar a uma lista de requisitos. Também é pré-condição que esse uso da fonte humana seja proporcional ao objetivo que se tenta atingir. (37)



CONCLUSÃO:
  
    A estrutura britânica de inteligência consolidada e revelada publicamente após a Guerra Fria forma uma teia complexa, sob controle estreito do governo britânico. O fato de ser publicamente divulgada, em linhas gerais, inclusive na internet, a torna passível de controle externo mais elaborado, mas sua simples existência não fornece nenhuma evidência de como (ou se) acompanhamento de fora – feito por órgãos do Judiciário e do Legislativo – funciona a contento.  Apesar disso, sua divulgação aparentemente atinge, pelo menos de forma superficial, o objetivo de dar à opinião pública algum tipo de satisfação a respeito dessas agências.
    A rede de órgãos de controle sobre o sistema, formado por órgãos do Executivo, Legislativo e Judiciário, aparentemente insere-se em uma preocupação que eu chamaria de fiscalização cruzada, ou seja, a ideia de que uns supervisionam os outros. De certa forma, a nenhuma estrutura é dada a palavra solitária sobre uma questão envolvendo inteligência,havendo com frequência mais de uma instância de exame. Trata-se de modelo relevante, cuja eficácia requer, além do teste do tempo e de situações concretas, estudo acadêmico mais detalhado. Sua origem aparente – a busca da legitimidade da opinião pública após a Guerra Fria -, além da tradição de ação clandestina, por parte de agências de inteligência, sugerem cautela em seu exame. Mas sua existência não deixa de ser um fator novo, a ser levado em consideração nas avaliações sobre o setor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

(1) INTELLIGENCE and Security Committee. Intelligence and Security Committee Anual Report 1997-1998.Em:http://www.archive.official-documents.co.uk/document/cm40/4073/4073.htm.

(2) The Stationery Office (TSO). National Intelligence Machinery.  Disponível em:http://www.cabinetoffice.gov.uk/media/cabinetoffice/corp/assets/publications/reports/intelligence/nationalintelligencemac
hinery.pdf

(3) Refiro-me aqui a dados colhidos entre o fim de 2009 e o início de 2010

(4) The Stationery Office (TSO). National Intelligence Machinery.  Página 2. Disponível em:http://www.cabinetoffice.gov.uk/media/cabinetoffice/corp/assets/publications/reports/intelligence/nationalintelligencemachi
nery.pdf

(5) À exceção dos serviços militares.

(6) Cito as organizações que considero mais importantes. Há outras – algumas envolvendo até funções policiais.

(7) Idem. Página 5.

(8) THE STATIONERY OFFICE (TSO). National Intelligence Machinery.  Página 23. Disponível em:http://www.cabinetoffice.gov.uk/security_and_intelligence/community/central_intelligence_machinery/joint_intelligence_co
mmittee.aspx

(9) Trata-se de um órgão de assessoria do JIC, formado por analistas de vários departamentos, especialidades e disciplinas. Sua função é “digerir” as análises preparadas pelos serviços de inteligência britânicos, acompanhando assuntos de interesse do governo do país, providenciar avisos sobre ameaças a interesses britânicos e monitorar países sob risco de instabilidade.

(10)  TSO, op. cit. Página 7.

(11) E também todo o sistema de inteligência. A lei de 1989 dizia respeito apenas ao Security Service. O ISA teve aspecto mais institucional.

(12) Idem, páginas 7-8.

(13) Ibidem. Páginas 11-13.

(14) Ibidem. 9-10.

(15) Ibidem. Páginas 14-15.

(16) Ibidem. Página 16.

(17) Ibidem. Página 32.

(18) CABINET OFFICE. Intelligence and Security Committee – Legislation. Disponível em:http://www.cabinetoffice.gov.uk/intelligence/legislation.aspx.

(19)   O Human Rights Act 1998 é uma lei britânica, definida em seu preâmbulo como uma regra legal “to give further effect to rights and freedoms guaranteed under the European Convention on Human Rights; to make provision with respect to holders of certain judicial offices who become judges of the European Court of Human Rights; and for connected purposes”.

(20) Já abordei o assunto em TOSTA, Wilson. Reino Unido, Espanha e Brasil: três casos de controle público de serviços de inteligência no pós-Guerra Fria. Boletim Tempo Presente (UFRJ),v.3, p.1, 2008. Para fins de comparação, reproduzo aqui a análise que fizera nesse artigo, com modificações pequenas. Disponível em http://www.tempopresente.org/index.php?option=com_content&task=view&id=4203&Itemid=147


(21) Intelligence Services Act.  Preamble. 2, (2), a.

(22) Idem. 2, (2), a, I-IV

(23) Ibidem. 2, (2), b.

(24) Ibidem. 5 e 6.

(25) Ibidem. 7, (3), (a), (b), (c).

(26) Ibidem. 7, (4), (a), (b), (c).

(27) Ibidem. 8, (3).

(28) Ibidem. 8, (5).

(29) THE STATIONERY OFFICE. National Intelligence Machinery. Páginas 32-33. Disponível em:http://www.cabinetoffice.gov.uk/media/cabinetoffice/corp/assets/publications/reports/intelligence/nationalintelligence
machinery.pdf

(30) Intelligence Services Act. Preamble.  8, (4), a, b,c.

(31) Ibidem. 8, (5), (6).

(32) Ibidem.8, (7).

(33) Regulation of Investigatory Powers. I, 5, (1), (a), (b), (c), (d).

(34) Idem. 6, (1), (2), (a), (b), (c), (d), (e), (f), (g), (h), (i), (j).

(35) Ibidem. I, (1) a (8).

(36) Ibidem. I, (1) a (8).

(37) Ibidem. II, 29, vários itens.

TOSTA, Wilson. A Central Intelligence Machinery e seus controles: serviços secretos britânicos, sua estrutura e accountabilityRevista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 5, Nº17, Rio, 2010 [ISSN 1981-3384] 

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